Hoje vivemos em rede, amarrada a um corre-corre de informações e
acontecimentos. Fatos e atos do cotidiano se somam com o andar da vida e, de
repente, chegamos na chamada melhor
idade. Dizem que a melhor idade é a idade em que se aproveita melhor a vida, pois estamos
próximos de usufruir da nossa tão esperada aposentadoria. Daí a nominação Melhor Idade. Mas será mesmo?
No Brasil, temos
três tipos de regime de previdência que conferem o direito à aposentadoria: (i)
o Regime Geral de Previdência Social (RGPS); (ii) o Regime Próprio de
Previdência Social (RPPS) e o (iii) Regime Complementar. Todos têm como
parâmetro para concessão de benefícios a idade de seus beneficiários, cujo
limite máximo para a atividade é de 70 anos[1].
Mas, aos 60 anos de idade já estamos na melhor
idade, pois somos considerados, por lei, como idosos (Lei nº 10.741/2003). E é o
Estatuto do Idoso que reforça essa conotação de melhor idade ao assegurar ao idoso "todas as oportunidades e facilidades, para preservação
de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade" (Art. 4º). É também o Estatuto do Idoso
que traz imanente às garantias de
liberdade e dignidade do idoso o dever
de respeito, consubstanciado "na inviolabilidade da
integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da
identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos
objetos pessoais" (Art.
10, § 2º).
As
normas trazidas a cotejo ressoam os direitos fundamentais postos na Carta Maior
que, sem dúvida, não se limita ao idoso, mas a todo cidadão brasileiro por
dever de convivência em sociedade. São valores que ecoam das leis e que para as
pessoas de idade mais avançada precisava ser replicada como valor dos valores
para além da Constituição da República. O problema é a materialização desses
direitos e a postura da própria Administração Pública diante de situações em
que o tempo já demanda novos tempos, mormente em sede de aposentação.
Vamos
explicar.
Agasalhamos a convicção de que a demarcação de uma idade limite para inativação de uma pessoa é a declaração de sua sentença de morte em vida. E esse processo tem início com a fixação de uma idade para se considerar uma pessoa idosa, em que pese os benefícios financeiros que dessa condição possa advir[3]. Sim, porque a presunção de invalidez da pessoa pela idade já começa, no Brasil, aos 60 anos, pois a partir de então já recebe a alcunha oficial de idoso (melhor idade?). O progresso de sua experiência e a abundância de seus conhecimentos passam, do dia para noite, em razão do termo certo fixado pela lei, por um processo de finalização social. A pessoa perde a posse do seu "eu" ativo ao olhar da sociedade[4].
O Ministro Cezar Peluzo, por ocasião de sua compulsória aposentadoria aos 70 anos de idade, em entrevista exclusiva a Globo News (30/8/2012), fez o seguinte registro: "Aposentadoria compulsória é coisa de um país pouco inteligente. Como é que o Estado aposenta compulsoriamente um servidor, depois de 20, 30 ou 40 anos em que ele adquire uma experiência, para pagar proventos, e traz para o lugar dele um outro funcionário, que ainda vai aprender aquela função, e terá que pagar também."
E vamos mais além. Professores universitários, ativos e experientes, quando chegam aos 70 anos de idade deixam, como os demais servidores públicos no Brasil, os bancos acadêmicos. O cabedal de conhecimento adquirido não mais o dignifica ao exercício do mister. Para eles sobra a sina de ingressar no Programa de Prestação de Trabalho Voluntário (na UFPA é disciplinado pela Resolução 679/2009). A adesão ao serviço voluntário de docente, entretanto, somente poderá ser exercido mediante corresponsabilidade com outro docente do quadro efetivo da instituição, o que significa afirmar que esse professor, aos 70 anos, para lecionar a disciplina de sua vida inteira deverá possuir um "tutor" para avalizar o seu trabalho. Os 70 anos pôs fim ao seu Pós-Doutorado, ao seu Saber, pelo menos em ambiente público vinculado ao RPPS[5].
Em ambiente público, um servidor prestes a alcançar a maioridade para aposentadoria compulsória já começa a ser objeto do que denominamos de processo de expulsão. Na verdade, o processo tem início muito antes, quando o servidor inaugura a melhor idade. E esse processo não se dá por meio de pedido do servidor ou mediante ofício formalizado pela Administração. Ele acontece sorrateiramente, por meio de palavras, ações e omissões de outros tantos agentes que, a despeito de estarem sujeitos ao mesmo destino, se erguem como vozes a rechaçar o que ditam ser ultrapassado - palavra que vem agregada à presunção de defasagem de conhecimento e à perda de habilidade, enquanto requisitos que emergem como condicionantes do processo de avaliação de desempenho com foco em competências, atualmente voga do processo avaliativo no serviço público[2].
É
lógico que existem exceções a esse processo, principalmente em determinadas
áreas de atuação pública, mormente as submetidas à escolha política, por
preponderância. Mas, em regra, esse processo é visível, ainda que silencioso, e
pode ser observado por meio da análise das causas que levaram à edição das
próprias normas protetivas. Protege-se porque é preciso salvaguardar a
dignidade da pessoa com idade avançada por meio de regras sólidas capazes de
imputar, por coerção,
valores que se mostram antagônicos aos fatos do cotidiano, ou seja, protege-se
por ausência de valores. Imputam-se valores por meio do processo legislativo
para consolidar postura do DEVER SER. Esse é o caminho? É um caminho instituído
por lei porque a própria lei criou os limites de idade e estabeleceu os rótulos
correspondentes. É o retorno ou efeito natural da fixação de idade para
inativação ou presunção de invalidez. Causa e efeito. Ação e reação.
As perdas com esse
tipo de política pública - porque assim o é ao olhar de muitos - não param por
aqui.
É preciso mudar.
A discussão acerca
da elevação da idade limite para aposentadoria deve ser retomada, mormente
porque o crescimento da expectativa de vida do trabalhador brasileiro, ponto
trazido à discussão pelo governo para sustentar as ondas de reforma
previdenciária, não parece ter sido levado a cotejo para esse fim específico. A
idade limite para aposentadoria compulsória não foi modificada, muito embora
tenham se modificado e elevado o peso da idade para as aposentadorias
voluntárias, o que já denota um contrassenso.
A justificativa do
limite de idade ligada à oxigenação dos quadros de pessoal e ao incentivo ao
acesso a cargos e empregos públicos destoa das motivações reformistas na área
previdenciária. O que terá maior recompensa em âmbito
previdenciário? Certamente a elevação da idade trará mais benefícios, pois além
de assegurar a expertise de quem deseja
manter a sua força de trabalho em prol do órgão ou da empresa para o
qual laboram, esses trabalhadores adiam a concessão de benefícios e, portanto,
entardecem o acionamento do custeio previdenciário por parte do Estado.
Outra questão que emerge nessa discussão está
centrada no próprio valor do benefício previdenciário. O idoso, ou o
trabalhador que deixa o seu cargo ou emprego de forma compulsória, é,
teoricamente, o que mais precisa de recursos para gastar com tratamento médico
e medicamentos. E, sabe-se, o valor do benefício é sempre menor do que os
ganhos da atividade, não sendo producente, para o Estado, assumir mais um ônus
decorrente desse empobrecimento fatal.
Mas o que, acima de tudo, precisa mudar é a nossa
realidade sócio-cultural que, infelizmente, vem se fortalecendo por efeito dessa
política dita protetiva: elos de ação e reação.
Não podemos esquecer que vivemos na tribo chamada
Brasil, cuja origem indígena enaltece o ancião, prestigiado pela sua sabedoria
e experiência. Nas tribos africanas, de onde vieram nossos negros, os mais velhos
eram os chefes das aldeias, incumbidos de transmitir os ensinamentos. A nossa
normatividade social deve representar essa imagem miscigenada, cuja proteção não mais condiz com
a fixação de categorias etárias, que somente marginalizam o indivíduo. É
preciso construir novas representações para o envelhecimento do corpo e o
primeiro passo para essa mudança pode estar na força normativa: a legislação
enquanto referência desencadeadora desse processo de reconstrução.
Não deixemos que o status conquistado ao
longo da vida seja um processo de desvalor, pois o envelhecer nada mais é do
que a tradução maior da própria vida!
Que todas as idades sejam a Melhor Idade!
2015 abençoado a todos os leitores do Blog!
Texto dedicado a minha mãe, Maria Luzia Miranda
Alvares, Doutora em Ciência Política, jornalista e crítica de cinema em
Belém/Pa, professora universitária que, aos 74 anos de idade, é a pessoa mais
ativa que conheço.
[1] O Regime Geral de Previdência
Social (RGPS) traz previsão de aposentadoria por idade de forma compulsória ao
empregado que atingir a idade considerada de risco social, prevista no art. 51
da Lei 8.213/91, a saber: aos 70 anos de idade para o
homem; e, aos 65 anos para a mulher, a critério do empregador que, sem
qualquer justificativa, pode rescindir o contrato de trabalho aquando
do implemento da condição etária (o empregador detém a faculdade de rescisão). No campo do Regime Próprio de Previdência
Social (RPPS), a aposentadoria do servidor público aos 70 anos de idade é
compulsória, assim denominada como modalidade de inativação pelo art. 40, § 1º,
inciso II, da Constituição e pelo art. 187 da Lei nº 8.112, de 1990. No Regime
Complementar, por sua vez, os planos de benefícios são estruturados sob a
condição de cessação do vínculo laboral ou da atividade, portanto, aderem à concepção
da regra geral de limitação de idade prevista nos regimes que complementa (art.
3º, inciso I, da LC nº 108/2001 e art. 14, I, da LC nº 109/2001).
[2] Decreto nº 7.133/2010 e outros normativos
similares.
[3] O idoso maior
de sessenta e cinco anos pode ter jus ao benefício de prestação
continuada quando comprovar não possuir meio de subsistência ou de sua família
para provê-lo (Decreto nº 6.214/2007 ex vi do art. 34 da Lei nº
10.741/2003).
[4] Não se está aqui a falar em discriminação
legal em razão da idade, até porque a idade limite fixada por lei é conferida a
todos em igualdade de condições. O que se está a dizer é que a fixação da idade
tem o condão criar ou fortificar o desvalor social pela categoria que inaugura
oficialmente. Ainda que a proteção legal tenha por intuito coibir a
discriminação, esta surge como reação da categoria inaugurada: elos de ação e
reação.
[5] Na iniciativa privada ainda
resta a alternativa de permanência por faculdade
do empregador, como se disse alhures em nota de rodapé. Ou melhor, a
aposentadoria aos 70 anos de idade é compulsória para o empregado, desde que
assim requeira seu empregador.
Oi Lucia, obrigada por dedicar a mim este texto tão importante. Na verdade, o enfrentamento das pessoas com o tempo da aposentadoria no momento em que se tem ainda tanta coisa para trabalhar e a lei diendo que somos 'inativas" meece um estudo extra leis, mas muito mais intentando mostrar como nos sentimos quando vemos alguém, da nossa instituição nos perguntar " mas já não estás aposentada? O que estás fazendo aqui?" Mesmo que essa interrogação soe como uma preocupação , algumas vezes sentimos que a situação é outra. Mas já disse que só vou sair da minha sala de pesquisa do GEPEM/UFPA quando me expulsarem de lá (não acho que isso possa ocorrer). Ou quando o anjo com a foice vier me colher na plantação. Beijo grande, querida.
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